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Arquiteto. Profissional responsável pelo projeto, execução e gestão de obras de arquitetura, urbanismo e paisagismo. Essa, sem dúvida, é uma das principais definições da profissão, mas faz com que o papel do arquiteto ainda seja constantemente confundido e conceituado erroneamente na sociedade. Também acontece de muitos destes profissionais serem considerados capacitados apenas para o ramo da decoração ou arquitetura de interiores. Ou ainda serem questionados sobre sua capacidade de executar projetos que a sociedade acredita fazer parte das atribuições de um engenheiro civil.

Mas, por outro lado, nós sabemos que existe uma grande parcela de arquitetos que resolveram abrir seu leque de atuação, se aventurando no mundo do design, do mobiliário, da moda, teatro e, também, no mundo do cinema.

A introdução acima integra o artigo de Daniela Medeiros, Mestre em Production Design da American Film Institute, em Los Angeles (EUA), para o Habitus Brasil. A instituição está entre as três melhores escolas de cinema no mundo e, constantemente, incorpora esses profissionais em produções de Hollywood. Formada em Arquitetura pela PUC PR e em Design de Mobiliário pela UTFPR, a profissional aceitou compartilhar parte da sua experiência e indagações que escuta ao explicar a atuação de uma arquiteta no mundo do cinema.

 

Na criação de um filme de época, o arquiteto/diretor de arte utilizará seu conhecimento de história da arte, arquitetura, urbanismo, restauro e desenho

 

Diferencial em outros campos artísticos

Profissionais que resolveram atuar em “novos” mercados, constantemente lidam com indagações confusas a respeito de terem estudado cinco anos para não exercer a profissão: “Então você desistiu de arquitetura?”, “Precisava ter feito arquitetura para fazer isso?”, entre outras perguntas que muitas vezes são respondidas com um “Pois é…”, para mudar de assunto.

Mas, felizmente isso não é verdade, pois ao seguirem carreira em outros campos artísticos, a arquitetura costuma se mostrar um grande diferencial para que possam se destacar. Afinal, durante nossa formação, somos apresentados a vários “mundos”. Para citar alguns… projeto arquitetônico, projeto urbanístico, teoria da arquitetura e do urbanismo, história da arte e da arquitetura, interiores, paisagismo, topografia, restauração de patrimônio histórico e políticas de preservação patrimonial e ambiental, além de vários outros temas – todos relevantes para quem atua no meio artístico ou cinema.

Esse é o caso de quem segue carreira com cenografia e direção de arte. Existem vários arquitetos que caminham nesta direção e por terem tido contato com tantas facetas diferentes de projetos de ambientes internos e externos, e reunido centenas de exemplos arquitetônicos, artísticos e de design, acabam por imprimir uma abordagem projetual diferente. Isso facilita o processo e permite a criação de propostas, por vezes, mais ousadas.

 

No cinema, na criação de uma floresta controlada, dentro de um estúdio, como realizado na saga de Harry Potter, conhecimentos de paisagismo, composição e questões estruturais se mostrarão úteis

 

Arquitetura na prática

Sim, muitos dos conhecimentos adquiridos não serão utilizados no mesmo trabalho, mas é muito comum que eles apareçam como uma necessidade ao longo de projetos diferentes. Por exemplo, na criação de um filme de época, o arquiteto/diretor de arte utilizará seu conhecimento de história da arte, arquitetura, urbanismo, restauro e desenho para a criação de cidades cinematográficas e outros sets de filmagem. Ou na criação de uma floresta controlada, dentro de um estúdio, como realizado na saga de Harry Potter, conhecimentos de paisagismo, composição e questões estruturais se mostrarão úteis.

Isso não significa que Diretores de Arte DEVEM ser arquitetos, mas as diversas qualidades desses profissionais se mostram muito relevantes neste segmento, e muitos estão ganhado espaço nas telas. Aliás, é possível que estes arquitetos estejam colocando em prática mais facetas da arquitetura do que àqueles que escolheram uma vertente específica de atuação.

 

Uma escolha profissional

Mas por que arquitetos fazem esta escolha? Falando por mim e por vários outros profissionais que tive o prazer de conhecer no segmento, o que chama a atenção é a dinâmica e a abertura à criatividade. O cinema abre oportunidades de criar ‘mundos diferentes’ e realidades que só nossos sonhos colocariam em prática. É a oportunidade de criar um castelo incrível daquele livro que você leu ou aquela cidade subaquática que questiona todas os limites da ciência.

O cinema coloca um arquiteto para criar sem limites (ou quase sem limites) e proporciona desafios diferentes a cada projeto, gerando uma chance muito pequena de tédio.

Além da parte criativa, existe a questão estrutural e projetual. Muitos arquitetos possuem a necessidade de desvendar o processo de construção de algo, a vontade de desvendar o quebra-cabeça. Pois bem, nada mais complexo do que projetar um barco ou submarino que estará dentro de um tanque de água em um estúdio de cinema. Ou uma nave espacial sob estruturas motores para criar a simulação de voo. Cada projeto é um novo desafio.

 

Além de sets de filmagem, um departamento de arte precisa escolher e detalhar todos os objetos de decoração que irão compor uma cena e o filme, como no fime A Invenção de Hugo Cabret

 

Production Designer

O Diretor de Arte, conhecido nos EUA como Production Designer, precisa ter um conhecimento considerável de arquitetura, design e arte em geral para desempenhar seu trabalho. De acordo com Catherine Martin, diretora de arte de “O Grande Gatsby” e vencedora do Oscar na edição 2014, “o trabalho de um Production Designer possui diversos paralelos com o de um arquiteto”.

“Ambos são responsáveis por trazer vida a um ambiente conceitual, gerenciar orçamentos, prazos, logísticas e regulamentações. Ambos possuem um processo criativo similar, desenvolvendo ideias, colaborando e coordenando um grupo de profissionais que dão a estes, a forma física. Porém, diretores de arte se preocupam em criar ambientes para serem capturados pelo filme e que existem apenas por um breve período de tempo. Algo que um cliente dificilmente pede a um arquiteto”. (Tradução livre da entrevista a Charlotte Neilson: “A Conversation with Academy Award Winning Set Designer Catherine Martin”, 05 Jun 2013. ArchDaily.)

 

 

 

Arquitetura no cinema

A relação entre arquitetura e cinema percorre uma linha tênue como arte, ao reproduzir imagens que criam a impressão de movimento e contam uma história, ou ao projetar o ambiente habitado pelo ser humano.

Existem centenas de filmes que representam uma época, um país, uma região ou uma cultura. Por meio destes filmes somos levados a um mundo que não conhecemos. Muitos deles nos fazem refletir sobre a humanidade ou nos transportam para o passado. Outros apenas nos levam para um mundo de fantasias, aventuras, piratas e vestidos medievais.

O fato é que esse conjunto depende muito da sensibilidade dos cineastas, tanto do Diretor quanto dos Diretores de Fotografia e de Arte. Obviamente, existem centenas de filmes que não se importam com precisão histórica ou arquitetônica, e que também não são completamente fiéis à realidade. E temos ainda aqueles que criam universos fictícios, como Avatar – que não seguem nenhuma referência obrigatória.

De qualquer forma, existem diversos profissionais e estudiosos que conseguem interpretar e analisar a história da arquitetura e do cinema, fazendo alusão ao estilo vigente da época e realidade do tempo a ser retratado.

Por isso, é possível entender muita coisa sobre a arquitetura retratada de um período ao estudarmos um filme com mais profundidade. Mas há outras dezenas de coisas que conseguimos entender e ler através de um filme, como, por exemplo, a sociedade, suas regras, medos, inseguranças e acontecimentos históricos. Igualmente é possível compreender muito sobre a própria arquitetura e o papel do design e decoração nessas obras retratadas.

 

Imagem do filme All These Voices, 2015. Sobreviventes encontram teatro ocupado por forças nazistas durante a Segunda Guerra e posteriormente bombardeado
Imagem do filme All These Voices (2015), vencedor de inúmeros festivais e prêmios nos Estados Unidos

 

Muito mais do que projetar

Além de sets de filmagem, um departamento de arte precisa escolher e detalhar todos os objetos de decoração que irão compor uma cena e o filme, e isso depende totalmente do personagem que vive, trabalha ou mantém esse espaço. Esse nível de conhecimento é trabalho para o Set Decorator (ou decorador de sets), que é responsável por todos os móveis, objetos e elementos que estarão presentes. Esse trabalho, por si só, exige um outro nível de pesquisa.

Para executar corretamente essa escolha, é preciso levar em consideração o nível econômico do personagem, idade, gosto, personalidade e sua situação geográfica e histórica. Além disso, é importante saber o estilo de mobiliário comum na época retratada, inclusive em grupos sociais específicos. Por fim, saber decorar o set de forma coerente e realista – ainda que isso não seja agradável aos olhos ou a opção mais comum. Tudo é regido por um personagem e pelo roteiro.

 

Urbanismo e arquitetura

Além de questões projetuais, construtivas e visuais, outra área que combina arquitetura e cinema é o urbanismo. Esta variação entre recriar uma cidade ou propor algo completamente novo para um filme ou seriado, exige muito conhecimento histórico de urbanismo e respeito a regras de planejamento urbano.

Pode parecer estranho e engenhoso, mas nesse caso podemos citar o universo dos jogos de videogame e computador que contam com “mundos” extensos e complexos, em todas as suas fases. Outra aplicação possível se dá em filmes de animação ou ainda em filmes com universos mais complexos, como em “A Origem” e “Mundos Opostos”. O último, aliás, teve Alex Mcdowell (foto abaixo) como Production Designer. Ele é precursor do conceito Design Imersivo e World Building, que discute exatamente o tema “construção de mundos”.

 

Alex Mcdowell atua como Production Designer e é precursor do conceito Design Imersivo e “World Building”, que discute exatamente o tema “construção de mundos" no cinema

 

E por que é tão necessária toda essa veracidade e precisão? O ser humano é acostumado com a arquitetura – ainda que não esteja familiarizado com todos os seus conceitos e campos de atuação. Ela faz parte de nossas vidas e quando algo está fora dos padrões reconhecidos, questionamos! Assim, um dos principais objetivos de um filme é transportar o espectador para aquele cenário onde aquela história é possível, e se o espectador duvidar, a magia está condenada ao fracasso.

 

Arquitetura e cinema se unem em filmes mais complexos, como em A Origem e Mundos Opostos

 

Daniela Medeiros, arquiteta e production designer

Formada em arquitetura e design de móveis, Daniela Medeiros atua como production designer e set designer nos Estados Unidos. Entre os filmes que trabalhou está “Icebox”, participante de importantes festivais pelo mundo, como Telluride, e que venceu recentemente o mais importante prêmio para curta-metragens no festival AFI Fest.

Também integrou a equipe de “All These Voices”, que conta a história de um soldado nazista lidando com seus traumas e arrependimentos vindo ao encontro de um grupo de sobreviventes. O filme ganhou Melhor Production Design no festival 24FPS International Short Film Festival, Melhor Curta-metragem Internacional no Las Vegas Film Festival, dentre outros prêmios.

Além destes filmes, Daniela foi Set Designer no próximo filme da Marvel, Thor, trabalhando com importantes profissionais como Dan Hennah (The Hobbit e Senhor dos Anéis) e Richard Hobbs (Mad Max). Atualmente, ela integra a equipe do seriado Counterpart, trabalhando com Dan Bishop, renomado Production Designer e conhecido pelo seu trabalho em Mad Man e The Good Place.